A pandemia da COVID-19 nos fez enxergar muitas coisas de forma diferente. Percebemos o quanto vivíamos confortáveis em detrimento de gerações anteriores que sempre tiveram dificuldades para além de seu controle e perspectiva, percebemos como muito do que temos na verdade só faz parte do nosso jirau de ícones de nossa época mas que pouco significam em termos de essência para sobrevivência, percebemos o quanto somos frágeis diante de forças descomunais como a de uma colônia de vírus organizados, percebemos o quanto a exploração do trabalho pode ser relativizada e não precisa se impor como uma verdade de todos os dias e horas (sim, durante os lockdowns, ao menos uma grande parte viveu e sobreviveu sem trabalho – não sem renda pois ainda dependemos do dinheiro) percebemos como a humanidade pode seguir sua mesquinhez mesmo diante de tal desafio e não se unir em torno do bem comum entre tantos outros aprendizados (ou falta deles).
Para
quem pode e teve um lar onde se refugiar durante a pandemia percebemos novos
lugares da casa, impusemos desgaste a esta estrutura que antes era dividido com
o desgaste que impúnhamos aos locais de trabalho e estudo durante as horas que
estávamos lá. Impusemos superexploração de minérios e de supercondutores para
nossa infraestrutura eletrônica, que foi levada à outra potência.
Falamos de assuntos nunca antes
aprofundados como índice de replicabilidade, taxa de transmissão, aprendemos
sobre médias móveis, gráficos e curvas em um desenvolvimento sem precedentes do
pensamento exponencial.
Mudamos bastante a nossa forma de
ser e estar. Estamos muito mais avatares do que na carne e osso. Conversamos
com quadradinhos na tela, nos encontramos em plataformas digitais onde somos
carros, bichos, monstros e muitas vezes, até seres humanos.
Nunca mais vimos os pés das
pessoas. Não conhecemos mais o cheiro, a altura ou mesmo suas costas. Ficamos
mais distantes, é verdade, mas ao mesmo tempo entramos no quarto dos colegas de
trabalho, na sala, no banheiro e, às vezes, até nos aposentos de sogros e
sogras. Sobramos intimidade para cabelos malfeitos, barbas desgrenhadas,
camisetas de vereadores da década de 90 e para crianças correndo e gritando de
um canto a outro da tela.
Ficamos à espreita por uma brecha
sanitária para encontrar os nossos mesmo que soubéssemos que não saberiamos nos
portar na situação tão aguardada.
Esperamos e esperamos, por anos.
Ficamos cansades, exaustes e extenuades.
Talvez nosso maior aprendizado
seja o da espera e da contemplação sem expectativas. Talvez o futuro não exista
ou precisaremos pensar nele depois. Em meio à pandemia, os que ousaram pensar
no após se frustraram muito. Mais coesos e centralizados ficaram os que
aprenderam a desfazer e a esperar. É possível que os de planos altos se movam
melhor no depois mas a real é que os que souberam abolir o depois estiveram
mais serenes.
Aos que urge o tempo, ele se
torna mais agressivo e machuca muito mais. Aos que ao tempo esperam e dão
espaço, ele é mais complacente neste ambiente pandêmico.
Ninguém me preocupou mais do que
adolescentes. As crianças estiveram com pais, mães e até avós e avôs mais do
que nunca mas a adolescência urge conquistas, urge investidas fora do casulo.
Urge experiências de autonomia e burradas bem como requer cuidado e atenção
psicológicas. Aos que foi possível por motivo de classe e outras condições, a
adolescência foi jogada dentro de um quarto com cheiro ruim de hormônios.
Relações virtuais são da geração delus, mas não precisava exagerar né?
Seus encontros vitais foram
cancelados por causa da avó comórbida que coabita. Os passeios e sua verve
foram amordaçadas pela falta de ar do pai. Foi exigido das forma mais
autocentrada de gente que tivessem responsabilidade coletiva e social e
planetária. Suas bocas foram recolhidas às máscaras.
Não sei o que será desta geração,
não consigo imaginar como vão pular esta fase. Ou não vão?
Sem egoísmos, sei que avós e avôs
viveram em guerras mundiais, guerras locais e guerras totais. Viveram pandemia
e estiveram ou estão por aí. Sua geração tem marcas, tem jeito, tem cultura e tem tempo. Não foram apagados
pois tiveram que engolir uma parte de sua vida.
Mas esta geração abalroada pela
pandemia da COVID-19 assusta sobremaneira pois estiveram distantes sem estar,
estiveram e foram ser ser e estar. Viram o mundo pelo ambiente virtual mas
nunca tocaram-se, sentiram-se.
Tiveram que se desfazer de seu
aprender e conquistar mesmo sem ter consolidado seu aprendizado e suas
conquistas. Tiveram que se despir de planejar mesmo sem ter modulado seu
aprendizado para a construção de um futuro pretendido.
Depois da geração Y, Z, Alfa, Beta, Delta, teremos a geração dos planos desfeitos. Uma geração que aprendeu muito cedo a perder, a desfazer e a desmontar, mesmo sem ter aprendido ainda a montar e a planejar. Pode ser que se tornem seres humanos mais conscientes. Pode ser que seja exatamente a geração que, por conta de sua experiência, aprenda que crescimento e consumo sem freio só servem para nos destruir a todes. No entanto, o que em preocupa no momento é algo bem mais prozaico. Estou dedicado a sofrer com as férias que não puderam tirar, com a educação que não puderam ter na escola, com avós e avôs que não puderam encontrar, com passeios que não puderam fazer, com encontros que lhes foram tirados e com a paciência e compreensão que delus foi exigida.
A geração dos planos desfeitos vai nos ensinar muita coisa e se desprender dos valores que hoje conduzimos. Serão independentes de premissas que hoje nos parecem alicerces de nossa sobrevivência mas no momento estão engasgades. Espremides por um mal que não enxergam e por uma sociedade que tampouco os vê. Governantes repensando a ordem das coisas para que o mundo que não é mais, ainda seja, do jeito que achavam que devia ser, e para que se mantenha funcionando uma economia que já não existe. Oprimides por irresponsabilidades de geração anterior a geração dos planos desfeitos seguirá seu passo e, oxalá um dia saibam desrespeitar a geração anterior culpando-a por seus planos desfeitos e transformando sua força em uma revolução de costumes forma de agir e pensar.
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à minha filha e ao meu filho que, até quando encerrei estas palavras
já haviam vivido entre os seus 09 e 13 anos na pandemia de COVID-19 –
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