quinta-feira, 29 de julho de 2010

Amalri Nascimento - Letargia

Letargia
(Selecionada para Antologia “100 Grandes Poetas Brasileiros” – Edição- 2010, da Câmara Brasileira de Jovens Escritores (CBJE)).

Mais um dia amanhece
Pelas frestas da veneziana
Filtradas réstias matinais
Anunciam os primeiros raios d’um sol radioso
Mas dominado por indolente inércia permaneço na cama
Uma súbita letargia
Teima tomar de assalto minha debilitada alma
Mergulhado em modorra
Meu corpo digladia com lençóis amarrotados...
Travesseiros molhados intentam afogar minha demudada face
Reflexo d’uma torturante noite mal dormida
O hálito cetônico amarga meu paladar
E uma aflitiva angústia aperta o meu peito
Ao meu lado ainda em sono profundo
A iminência de um dia moroso
Sob um teto a derramar penumbra inquisidora
Brotam descrenças e indagações carrascais
Fecho os olhos com toda força
E viajo no espocar de luzes coloridas
Abraço os joelhos qual feto em proteção uterina
Prostrado no leito que me abraça
As horas correm lentas
O dia esvai languidamente
Uma nova e acalentadora noite cai
Um prateado lunar esgueira-se janela adentro
Lambe minha pele suada
E me desperta subitaneamente
Enquanto sou embalado numa aura noturnal de felicidade
Que me prepara para um novo dia

Amalri Nascimento

Postado por Amalri Nascimento, 29/07/2010

Paul Lafergue - O Direito à Preguiça

“Sejamos preguiçosos em tudo,
exceto em amar e em beber, exceto na preguiça”

Lessing - em "O direito à Preguiça", de Paul Lafergue, 1883

Postado por janadavila, 29/07/2010

Juliana Borges - Em memória do meu avô Idelfonso

Em memória de meu avô Idelfoso - Juliana Borges

Eu espero que os filhos que ainda não tive, me perdoem por não trazê-los antes ao mundo.
É verdade que perderam bastante. Sinto não poder apresentá-los ao bisavô.
Sei que, mesmo que venham logo, a casa não terá a mesma alegria sem a cadeira ocupada no alpendre.
Daqui a pouco nem há mais alpendre. Nem as cadeiras que, contrariando vovó, ele comprou com determinação. Vovó nunca se sentou nessas cadeiras. Pura pirraça.
As mãos tremidas não virão cheias de balas e doces.
Meus filhos não irão assitir a seguinte cena no almoço de domingo: vovô detesta lasanha, então mamãe prepara o prato e diz que é "torta de pastel". Vovô come lambendo os beiços e ainda elogia!
Meus meninos não vão se perguntar por que o biso grita como se tocasse uma boiada. Era essa a lida dele com a vida, uma boiada que passa sem parar.
Eu não precisarei explicar que o coração dele não era grande de bondade, é que a Doença de Chagas fez crescer. Não que ele não fosse um homem bom. É que vovô lida com bois, entendem? Não sabe ser carinhoso, só faz carinho com os olhos.
Mamãe disse, que uns dias antes de ir embora, vovô perguntou com a fala arrastada se eu já estava grávida. Ele também queria muito conhecer os bisnetos.
Vovô se preocupa e quer mandar o pão quentinho aqui pra Brasília. Eu insisto que não chega bom.

Faz, fez, fazia. É, foi, era, será. Será? Ainda não sei como contar. Não sei como conto essa história.

Em memória do meu avô, Sr. Idelfonso, conhecido como Neném, que morreu no último dia 20.

Postado por Juliana Borges, 29/07/2010

Fabricio Carpinejar

"Muitos escolhem a solidão porque simplesmente não suportam sua infelicidade com testemunhas."

Fabricio Carpinejar via Twitter (@carpinejar)

Postado por Renato Bock, 29/07/2010

William Blake - A Resposta da Terra

A Resposta da Terra - William Blake


A terra levantou sua cabeça
Desde a escuridão pavorosa e triste.
Sua luz voou,
Pétreo terror!
E cobriu seus cabelos com cinzento desespero.
"Presa junto a úmida costa,
Ciúmes estrelados guardam meu covil:
Fria e velha,
Chorando,
Escuto ao Pai dos homens antigos.
Egoísta Pai de homens!
Cruel, ciumento, medo egoísta!
Pode o gozo,
Acorrentado na noite,
Dar à luz as virgens da juventude e manhã?
A primavera esconde sua alegria
Quando os casulos e as flores crescem?
O semeador
Semeia pela noite,
Ou o lavrador lavra na escuridão?
Rompe esta pesada corrente
Que rodeia de gelo meus ossos
Egoísta! Inútil!
Eterna praga!
Que ao livre Amor ataste com ataduras."


William Blake
(Tradução de Patrícia Clemente e Sofia)

Postado por Alexandre Silveira, 29/07/2010

Oswald de Andrade - Vício na Fala

Vício na fala

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados

Oswald de Andrade

Postado por Adriana Zacchi, 29/07/2010

Pablo Neruda - Preguiça

Preguiça - Pablo Neruda

Não trabalhei em Domingo,
ainda que nunca fui Deus.
Nem de Segunda a Sábado
porque sou criatura preguiçosa,
contentei-me com olhar as ruas
onde trabalham chorando
pedreiros, magistrados, homens
com ferramentas ou com ministérios.

Fechei todos meus olhos de uma vez
para não cumprir com meus deveres,
essa é a coisa
sussurrava-me a mim mesmo
com todas minhas gargantas,
e com todas minhas mãos
acariciei sonhando
as pernas femininas que passavam voando.

Depois bebi vinho tinto do Chile
durante vinte dias e dez noites.
Bebi esse vinho cor de amaranto
que nos palpita e que desaparece
em tua garganta como um peixe fluvial.

Devo agregar a este testemunho
que mais tarde dormi, dormi, dormi,
sem renegar de minha má conduta
e sem remordimentos,
dormi tão bem como se chovesse
interminavelmente
sobre todas as ilhas
deste mundo
furando com água celeste
a caixa dos sonhos.

Postado por Gus Vieira, 29/07/2010

Pablo Neruda - Pedras Antárticas

Pablo Neruda - Pedras Antárticas

"Ali termina tudo
e não termina:
ali começa tudo
se despedem os rios no gelo,
o ar se há casado com a neve,
não há ruas nem cavalos
e o único edifício
o construiu a pedra.
Ninguém habita o castelo
nem as almas perdidas
que frio e vento frio
amedrontaram:
é sozinha ali a solidão do mundo,
e por isso a pedra
se fez música,
elevou suas delgadas estaturas,
se levantou para gritar ou cantar,
porém ficou muda.
Só o vento,
o açoite
do Pólo Sul que assobia,
só o vazio branco
e um som de pássaro de chuva
sobre o castelo da solidão."

Postado por Janaina Cordeiro de Moura, 29/07/2010